Quando alteramos nosso destino e abrimos mão daquilo que um dia sonhamos somos severamente julgados, pelos outros e também por nós. Somos tachados de covardes, incapazes e outras coisas pejorativas que geralmente vêm de bocas com línguas grandes e egos inflados.
Na verdade, quando abrimos mão de algo que fez nosso coração vibrar, nosso pulso acelerar e nosso mundo ter mais cor temos que ser muito mais fortes do que quando nos dispusemos a sonhar. Isso não deixa de ser prova de coragem.
A história começa lá atrás, com uma menina de sorte que morava com a mãe e os dois irmãos na ante-sala da avó materna e fazia com o primo os brinquedos da infância; que dividia com a amiga um par de patins; que estudou em escola particular a vida inteira porque dispunha de uma bolsa integral dedicada aos menos abastados e que nesses tempos de escola estudava com a amiga nos livros dela. Mesmo sendo uma apaixonada por eles não podia ter os seus. Eram caros demais, artigo de luxo indisponível para recursos parcos. E foi assim que a menina aprendeu a esperar e, de certa forma, até a se conformar, pois encontrava na biblioteca da tia, não muito solícita, uns livros que ela podia ler ali, na presença dela.
A menina vivia envolvida nesse mundo das palavras e desde muito cedo apaixonou-se por língua portuguesa e suas conjugações verbais, suas concordâncias, discrepâncias, análises sintáticas, discursos sintéticos, frases de efeito, textos bem elaborados e até (não contem a ninguém) passagens dos livros de Roberto Shinyashiki; adorava uma brincadeira de escola e sempre ajudava as amigas nas vésperas de provas.
Nasceu o sonho: "vou ser professora"
Faculdade de letras: ok
Especialização em linguística: ok
Durante esse período em que pagou faculdade a menina, agora uma mulher, não conseguia ter seus livros. Nunca dava. Continuavam a ser artigos de luxo.
Depois de formada a menina recebe uma proposta irrecusável de trabalho com um salário que nunca imaginou receber. A menina enlouqueceu e com sua formação sonhada foi...ser administradora.
Comprou livros, comprou livros, comprou livros. Mensalmente era uma par, no mínimo.
Ia e voltava do trabalho ávida, engolindo seu tesouro. Montou uma biblioteca de dar inveja à Universidade Estadual, tudo atual que adquiria em congressos e seminários que não deixou de participar. De zero foi a mais de duzentos. Ganhou uma estante, plantou-a no seu quarto, criou seu mundo. Saiu do emprego anterior e foi gerenciar uma loja de cosméticos e perfumaria.
E a sala de aula? E o sonho da menina?
Passaram-se 7 anos...
Hoje a menina, sem muito pensar, colocou suas gramáticas, seus livros de linguística e seus sonho em duas enormes sacolas plásticas, jogou na mala do carro e deixou com os amigos de faculdade, professores reais de fato e de direito.
Depois que chegou em casa deu de cara com o vazio da estante e alguma coisa na garganta. Despediu-se. Despiu-se. Deixou pra trás...
A menina entende que nem todo sonho se realiza e que livros são úteis demais pra ficarem enfeitando estantes, que é melhor deixá-los com quem realmente vá usá-los. Entende que "tornar o amor real é expulsá-lo de você pra que ele possa ser de alguém" e que um sonho pode ser realizado por outro alguém. E, apesar da dor da despedida, ficou feliz com a certeza de tê-los deixado em boas mãos...