“Foi meu pai quem me ensinou o valor da honestidade. Tudo que eu não tenho, devo a ele.” (Ciro Pelicano, publicitário)
No final do ano passado, apareceu um pacote suspeito na porta da livraria. Não foi a primeira vez. O lugar é ermo, escuro. Certa vez deixaram uma ninhada de bichanos, que acabei adotando. Pra variar, Machado, meu fiel escudeiro, sopitava e não viu quem o trouxe.
Antes de abri-lo, ainda pensei: seria alguma bandalheira do Toscano, um despacho, uma bomba? Como saber? Nos dias de hoje, não se deve bulir em pacotes suspeitos. A curiosidade venceu a prudência. Sacudi o embrulho tentando adivinhar seu conteúdo. Tudo em vão. Deixei de lado meus sofismas e desfiz o pacote. Para minha surpresa, eis que surge uma velha conhecida, surrupiada da joalheria do meu pai, quarenta e tantos anos atrás.
Quando chegamos a Belém, o velho alugou uma casa geminada na Aristides Lobo. Até hoje está lá. Na entrada, um balcão de madeira separava o público da oficina. Sobre ele, uma campainha, um rolo de durex e uma poderosa lente, usada para examinar as jóias dos clientes. Um belo dia, justamente quando eu estava por lá, a lente sumiu misteriosamente. Meu pai ficou 'pê' da vida, culpando minha desatenção pelo acontecido. Junto com o objeto devolvido, um bilhete revelador.
“Caro senhor, acompanho seus escritos há tempos. Quando menino, eu vendia picolés pelo Comércio. Seu Eliel era um dos meus mais assíduos clientes. Sempre pedia picolé de bacaba. Eu ficava atrás do balcão, esperando o dinheiro e namorando essa lente. Nela, enxergava os poros da minha pele, as sujeiras de baixo da unha, uma indefesa formiguinha, transformava-se num inseto monstruoso. Numa tarde chuvosa, não resisti. Entrei à socapa e surrupiei-a. Não quero justificar meu erro, porém, graças a ela, realizei proezas inimagináveis. Fiz fogueira no quintal, tirei bicho de pé... Foi ela - hoje eu sei - que minimizou minha infância pobre. O senhor há de perguntar por que somente agora estou devolvendo-a. Nem eu mesmo sei. Arrependimento, culpa... Só sei que pela lei de Deus, na dos homens também, roubo é pecado grave, gravíssimo. Espero que vocês me perdoem (naquele tempo, eu era apenas um menino travesso), principalmente seu pai, que sempre me deu conselhos e jamais desconfiou de mim.”O bilhete terminou sem sequer uma pista do autor, uma assinatura, nada, nadica. Pena. Bem que eu gostaria de conhecer o 'menino' que furtou, guardou e devolveu a lente do velho. Seu gesto me comove e me faz acreditar que ainda existem meninos sonhadores que erram e, um dia, se arrependem.
(Denis Cavalcante – cronista e livreiro)
No final do ano passado, apareceu um pacote suspeito na porta da livraria. Não foi a primeira vez. O lugar é ermo, escuro. Certa vez deixaram uma ninhada de bichanos, que acabei adotando. Pra variar, Machado, meu fiel escudeiro, sopitava e não viu quem o trouxe.
Antes de abri-lo, ainda pensei: seria alguma bandalheira do Toscano, um despacho, uma bomba? Como saber? Nos dias de hoje, não se deve bulir em pacotes suspeitos. A curiosidade venceu a prudência. Sacudi o embrulho tentando adivinhar seu conteúdo. Tudo em vão. Deixei de lado meus sofismas e desfiz o pacote. Para minha surpresa, eis que surge uma velha conhecida, surrupiada da joalheria do meu pai, quarenta e tantos anos atrás.
Quando chegamos a Belém, o velho alugou uma casa geminada na Aristides Lobo. Até hoje está lá. Na entrada, um balcão de madeira separava o público da oficina. Sobre ele, uma campainha, um rolo de durex e uma poderosa lente, usada para examinar as jóias dos clientes. Um belo dia, justamente quando eu estava por lá, a lente sumiu misteriosamente. Meu pai ficou 'pê' da vida, culpando minha desatenção pelo acontecido. Junto com o objeto devolvido, um bilhete revelador.
“Caro senhor, acompanho seus escritos há tempos. Quando menino, eu vendia picolés pelo Comércio. Seu Eliel era um dos meus mais assíduos clientes. Sempre pedia picolé de bacaba. Eu ficava atrás do balcão, esperando o dinheiro e namorando essa lente. Nela, enxergava os poros da minha pele, as sujeiras de baixo da unha, uma indefesa formiguinha, transformava-se num inseto monstruoso. Numa tarde chuvosa, não resisti. Entrei à socapa e surrupiei-a. Não quero justificar meu erro, porém, graças a ela, realizei proezas inimagináveis. Fiz fogueira no quintal, tirei bicho de pé... Foi ela - hoje eu sei - que minimizou minha infância pobre. O senhor há de perguntar por que somente agora estou devolvendo-a. Nem eu mesmo sei. Arrependimento, culpa... Só sei que pela lei de Deus, na dos homens também, roubo é pecado grave, gravíssimo. Espero que vocês me perdoem (naquele tempo, eu era apenas um menino travesso), principalmente seu pai, que sempre me deu conselhos e jamais desconfiou de mim.”O bilhete terminou sem sequer uma pista do autor, uma assinatura, nada, nadica. Pena. Bem que eu gostaria de conhecer o 'menino' que furtou, guardou e devolveu a lente do velho. Seu gesto me comove e me faz acreditar que ainda existem meninos sonhadores que erram e, um dia, se arrependem.
(Denis Cavalcante – cronista e livreiro)
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Olha Clau...