sexta-feira, 28 de maio de 2010

É Tempo de Pós-Amor*


Cansei de amor! Quantos filmes, entrevistas, artigos, livros sobre amor cruzaram seu caminho ultimamente? Em uma semana, assisti a um vídeo, vi um filme, li meio livro e participei de um debate na televisão. Tudo sobre amor. E ouvi as pessoas - provavelmente também eu própria - dizerem coisas pertinentes e bem ditas que, de tão pertinentes e repetidas, já se tornaram chavões comportamentais, e parecem fichas de computador dissecadas de qualquer verdade emocional. E de repente está me dando uma urticária na alma, um desconforto interno que em tudo se assemelha a indigestão.


Estamos fazendo com o amor o que já fizemos com o sexo. Na década passada parecia que tínhamos reinventado o sexo. Não se pensava, não se falava, não se praticava outro assunto. Toda a nossa energia pensante, todo o nosso esforço vital pareceia concentrado na imensa cama que erguíamos como única justificativa da exist~encia humana. Transformamos o sexo em verdade. Adoramos um novo bezerro de ouro.


MAs o ouro dos bezerros modernos é de liga baixa, que logo se consome na voracidade mass media. O sexo não nos deu tudo o que dele esperávamos, porque dele esperávamos tudo. E logo a sociedade começou a olhar em volta, à procura de um outro objeto de adoração. Destronando o sexo, partiu-se para a grande festa da coroação do amor.


Agora, aqui estamos nós, falando pelos cotovelos, analisando, procurando, destrinchando. E desgastando. Antes, quando eu pensava numa conversa séria, direita, com a pessoa que se ama, sabia a que me referia. Mas agora, quando ouço dizer que "o diálogo é fundamental para a manutenção dos espaços", não sei o que isso quer dizer, ou melhor, sei que isso não quer dizer mais nada. Antes, quando eu pensava ou dizia que amr é fundamental, tinha a exata noção da diferença entre o fundamental e o absoluto. Mas agora, quando eu ouço repetido de norte a sul, como num gigantesco eco, que "a vida sem amor não tem sentido", fico com a impressão de estar ouvindo um slogan publicitário e me retraio porque sei que estão querendo me impor um produto.


A vida sem amor pode fazer sentido, e muito. É bom que a gente recomece a dizer isso. Mesmo porque há milhões de pessoas sem amor, que viveriam bem mais felizes se de repente a voz geral não lhes buzinasse nos ouvidos que isso é impossível. O mundo só andou geometricamente aos pares na Arca de Noé. Fora isso, anda emparelhado quem pode, quando pode. E Noé. Fora Disso, anda emparelhado quem pode, quando pode. E o resto espera uma chance, sem nem por isso viver na escuridão.


Antes que se frustrem as expectativas, como aconteceu com o sexo, seria prudente descarregar o amor, tirar-lhe dos ombros a responsabilidade. Ele não pode nos dar tudo. Nada pode nos dar tudo. Porque o tudo não existe. O que existe são parcelas, que, eternamente somadas e subtraídas, mutiplicadas e divididas, nos aproximam e afastam do tudo. E a matemática dessas parcelas pode ser surpreendente: quando, como está acontecendo agora, tentamos agrupá-las todas em cima de uma única parcela - o amor - , elas nãose somam, pelo contrário, se fracionam, causando o esfacelamento da parcela-suporte.


Amor criativo é ótimo, dizem todos. E é verdade. Mas melhor ainda é pegar uma parte da criatividade que está concentrada no amor, e jogá-la na vida. Solta, ela terá possibilidades de contaminar o cotidiano, premear a vida toda e voltar a abastecer o amor, sem deixar-se absorver e esgotar por ele. Dedicar-se à relação é importante, dizem todos. E é verdade. MAs qualquer um de nós tem inúmeras relações, de amizade, vizinhança, sociais, e anda me parecendo que concentrar toda a dedicação na relação amorosa pode custar o empobrecimento das outras.


Sim, mo amor é ótimo. Porém, acho que vai ficar muito melhor quando sair do foco dos refletores e passar a ser vivido com mais naturalidade. Quando readquirirmos a noção de que não é mais vital do que comer e banhar o corpo em água fria nem mais tranquilizador do que ter amigos e estar bem com a própria cara. Quando aceitarmos que não é o sal da terra, simplesmente porque a terra é seu próprio sal, e é ela que dá sabor ao amor.




Marina Colasanti




* Esse texto foi reencontrado em um livro que emprestei e me devolveram hoje. è um texto que adoro, concordo e me identifico, porque o que me parece é que para mim é sempre tempo de pós-amor.


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