Não há nada mais indelicado do que esta senhora que tanto nos amedronta. Sorrateira, nunca avisa quando chega, quando chagará. Passeia entre nossa certeza (de que um dia virá) e nossa incerteza (não se sabe quando irá nos "brindar"). Que chega é certo, e esse papo de nos prepararmos, estarmos prontos pra ela é balela pra trouxa, pra psicólogos e psiquiatras mais interessados nos eufemismos que ela não se esforça em ofertar.
É a morte, a temida, a terrível, a mais indelicada de todas as criatura, que nem em nossos auges depressivos, kamikazes ou heróicos gostaríamos de encará-la. É o pior ladrão a nos apontar suas armas. É o pior felino a nos ameaçar com suas garras. É o inimigo mais perverso a nos enganar, mentir e invejar nossa vida. Ela nos sequestra sem resgate. Ela decide.
Por que falar em morte a essa altura?
É que hoje fui visitar um amigo que há uma semana perdeu a mãe pra um ataque fulminante. Antes de ir trabalhar dividiram um café. Ela queixou-se de uma dor no braço: "nada demais, meu filho". Aquele mesmo braço que há um ano foi deslocado pelo infortúnio de uma queda. Cria-se em dores consequentes desse vacilo das pernas. As dores aumentaram e em pouco tempo o sorriso dela se apagou e surgiu na terra mais um órfão de mãe.
Você que ainda tem a sua consegue imaginar isso? Não, nem em seus sonhos mais obscuros você não teria essa coragem de imaginar-se órfão.
Hoje, com um semblante aparentemente calmo (aparentemente), ele me contou em detalhes do ritual que começou com o abrir o armário e escolher o último traje; desembrulhá-la do lençol que envolvia seu corpo inerte quando chegou ao hospital, vesti-la, colocá-la dentro daquele objeto em madeira que a levaria pra sempre de seus braços. Depois passar uma noite inteira velando seu corpo sem vida, sob olhares curiosos, penosos, condescendentes, tristes e cumprimentos e palavras que nada dizem. Não há o que dizer. Entendam. A morte nos causa impotência, mudez, nos deixa sem graça.
E ele continuou contando que depois da despedida restam as burocracias humanas: atestados, cancelamentos, requerimentos, entradas e todo um processo organizacional pra que as coisas caminhem sem ela. É como o antigo ato de rebobinar uma fita. Recomeçar, recontar, reviver, reiventar novos acordares, almoços sem ela. E o pior de tudo, trabalhar como se nada tivesse acontecido, afinal, o mundo não parou de girar por causa disso, ele (o mundo) apenas não entendeu a orfandade de uma amor que não se terá nunca outro igual. Não entende o que é um revés de um parto, o pior tormento.
Não há eufemismo: é horrível, é ultrajante, é indecente, indelicado, insuportável, cruel.
Eu apenas o ouvi.
Não há o que dizer além de: "estou aqui", pra sabe-se lá o que.
Não há consolo. Talvez seja o ato mais solitário do mundo tentar voltar ao eixo depois de vivenciar uma perda definitiva. Tentar viver mesmo sem quem lhe deu a vida.
Só Deus nos põe nos braços nessa hora, nos consola, nos conforta e tenta nos fazer entender que nossa vida a Ele pertence. Ele nos dá, Ele decide a hora de nos levar.
Meu amigo vai ficar melhor, eu sei. Ele é um ser humano maravilhos e merce as bênçãos que recebe. Há de receber muito mais mesmo acompanhado da saudade que vai insistir, vai permanecer e incomodar quando for mais forte. E a morte, essa estúpida, irá nos visitar de alguma forma, como vistou há uma semana a família do meu amigo. E vai continuar desatando laços, cortando em definitivo nossos cordões umbilicais, nos fazendo sofrer. E a gente não precisa aprender a lidar com isso simplesmente porque não há receita, nem fórmulas. Cada um, a sua maneira é que saberá como lidar com isso. Como encarar o fim.
Nossa, Clau! :( Fiquei arrasada com teu post. Nem conheço seu amigo, mas me coloquei no lugar dele. Mesmo que nem consiga imaginar uma situação dessas, como você bem disse. Espero que Deus o conforte. É só o que eu e você podemos desejar num momento como este.
ResponderExcluirBeijos!
É verdade, minha amiga. Foi doloroso ouvir, imaginar, o que ele tava sentindo. a gente fica sem saber o que dizer. MAs, infelizmente, ela chega pra todos um dia. Ai ai, Deus que nos reserve o direito à paz. Beijos amiga!
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