quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

Sobre a indelicadeza da morte

Não há nada mais indelicado do que esta senhora que tanto nos amedronta. Sorrateira, nunca avisa quando chega, quando chagará. Passeia entre nossa certeza (de que um dia virá) e nossa incerteza (não se sabe quando irá nos "brindar"). Que chega é certo, e esse papo de nos prepararmos, estarmos prontos pra ela é balela pra trouxa, pra psicólogos e psiquiatras mais interessados nos eufemismos que ela não se esforça em ofertar.
É a morte, a temida, a terrível, a mais indelicada de todas as criatura, que nem em nossos auges depressivos, kamikazes ou heróicos gostaríamos de encará-la. É o pior ladrão a nos apontar suas armas. É o pior felino a nos ameaçar com suas garras. É o inimigo mais perverso a nos enganar, mentir e invejar nossa vida. Ela nos sequestra sem resgate. Ela decide.
Por que falar em morte a essa altura?
É que hoje fui visitar um amigo que há uma semana perdeu a mãe pra um ataque fulminante. Antes de ir trabalhar dividiram um café. Ela queixou-se de uma dor no braço: "nada demais, meu filho". Aquele mesmo braço que há um ano foi deslocado pelo infortúnio de uma queda. Cria-se em dores consequentes desse vacilo das pernas. As dores aumentaram e em pouco tempo o sorriso dela se apagou e surgiu na terra mais um órfão de mãe.
Você que ainda tem a sua consegue imaginar isso? Não, nem em seus sonhos mais obscuros você não teria essa coragem de imaginar-se órfão.
Hoje, com um semblante aparentemente calmo (aparentemente), ele me contou em detalhes do ritual que começou com o abrir o armário e escolher o último traje; desembrulhá-la do lençol que envolvia seu corpo inerte quando chegou ao hospital, vesti-la, colocá-la dentro daquele objeto em madeira que a levaria pra sempre de seus braços. Depois passar uma noite inteira velando seu corpo sem vida, sob olhares curiosos, penosos, condescendentes, tristes e cumprimentos e palavras que nada dizem. Não há o que dizer. Entendam. A morte nos causa impotência, mudez, nos deixa sem graça.
E ele continuou contando que depois da despedida restam as burocracias humanas: atestados, cancelamentos, requerimentos, entradas e todo um processo organizacional pra que as coisas caminhem sem ela. É como o antigo ato de rebobinar uma fita. Recomeçar, recontar, reviver, reiventar novos acordares, almoços sem ela. E o pior de tudo, trabalhar como se nada tivesse acontecido, afinal, o mundo não parou de girar por causa disso, ele (o mundo) apenas não entendeu a orfandade de uma amor que não se terá nunca outro igual. Não entende o que é um revés de um parto, o pior tormento.
Não há eufemismo: é horrível, é ultrajante, é indecente, indelicado, insuportável, cruel.
Eu apenas o ouvi.
Não há o que dizer além de: "estou aqui", pra sabe-se lá o que.
Não há consolo. Talvez seja o ato mais solitário do mundo tentar voltar ao eixo depois de vivenciar uma perda definitiva. Tentar viver mesmo sem quem lhe deu a vida.
Só Deus nos põe nos braços nessa hora, nos consola, nos conforta e tenta nos fazer entender que nossa vida a Ele pertence. Ele nos dá, Ele decide a hora de nos levar.
Meu amigo vai ficar melhor, eu sei. Ele é um ser humano maravilhos e merce as bênçãos que recebe. Há de receber muito mais mesmo acompanhado da saudade que vai insistir, vai permanecer e incomodar quando for mais forte. E a morte, essa estúpida, irá nos visitar de alguma forma, como vistou há uma semana a família do meu amigo. E vai continuar desatando laços, cortando em definitivo nossos cordões umbilicais, nos fazendo sofrer. E a gente não precisa aprender a lidar com isso simplesmente porque não há receita, nem fórmulas. Cada um, a sua maneira é que saberá como lidar com isso. Como encarar o fim.

2 comentários:

  1. Nossa, Clau! :( Fiquei arrasada com teu post. Nem conheço seu amigo, mas me coloquei no lugar dele. Mesmo que nem consiga imaginar uma situação dessas, como você bem disse. Espero que Deus o conforte. É só o que eu e você podemos desejar num momento como este.
    Beijos!

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    1. É verdade, minha amiga. Foi doloroso ouvir, imaginar, o que ele tava sentindo. a gente fica sem saber o que dizer. MAs, infelizmente, ela chega pra todos um dia. Ai ai, Deus que nos reserve o direito à paz. Beijos amiga!

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Olha Clau...